quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"Hoje é um novo dia, de um novo tempo que começou.

 Nesses novos dias, as alegrias serão de todos é só querer."

Composição Marcos Valle - In.: Um novo tempo.

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Dizia a mim mesma que algum dia voltaria a Finlândia, para ajudar a equipe de gnomos e duendes separar as cartas de Noel à luz do candeeiro. Talvez esse fosse o momento. Juntei-me ao exército dos exilados e por um instante cheguei a imaginar que pudesse surpreendê-lo enquanto empurrava seu trenó entre as colinas embaraçadas por tundras e bosques de pinheiros. O Natal desabaria frio e transparente no por do sol do dia vinte e quatro de dezembro, entraria pela ponta dos pés e só chegaria à noite, quando ninguém estivesse vendo. Montei meu próprio presépio, embora tivesse nas mãos apenas esterco, e contando a história para mim mesma, comecei sem saliva. Quando criança, abastecia os potes com leite e arroz para colocar do lado de fora da porta e dar de comer as manadas de renas que chegariam com os presentes de natal. Por alguma razão elas nunca vieram. Enquanto meditava sobre o espírito natalino me veio à memória a visão daquele cristo ensangüentado, arrancando uma coroa de espinhos e deixando rastros na neve da interminável noite hibernal. Não importava a que causa aquele cristo servia, contando que fizesse a humanidade entender de uma vez por todas que para subir a hierarquia e salvar o mundo desse surto de náuseas é preciso vomitar o rei que se carrega na barriga. Temi que sua missão fracassasse miseravelmente, já que ainda são maioria os que acreditam que o mundo gira em torno das virilhas. Voltei ao instante do seu nascimento e tentei resgatar a verdadeira mensagem do Natal. Dessa vez, houve efeitos especiais. O problema dos surrealistas é que eles não abrem mão da magia, ainda que a cenografia seja horripilante. Quando a emoção entra em cena, a razão pula pela janela. Comigo é sempre assim, sou especialista em dramas, principalmente os de conteúdo sobrenatural. A verdade é que eu havia fugido do mundo e só tinha um lugar onde eu pudesse me esconder: a imaginação. Meus pensamentos me apertaram com força, como se desejassem me espremer. Achei que fosse desmaiar ali mesmo e foi então que o vi. O operístico e insuperável homem de vermelho. A noite estava mais escura do que nunca, e por trás das vidraças, como se pudesse adivinhar meus pensamentos, o estranho sorriu. "Hohohoho." Sem saber se ele ria de mim ou para mim, tentei cobrir a cabeça o mais rápido possível antes que aquele lendário com formas ovais pronunciasse alguma palavra e concretizasse meus piores temores: a certeza de que ele era real. Voltei o cobertor xadrez à altura dos olhos e esperei. Trocamos um olhar de perplexidade e pela sua expressão de velório intuí que ele estivesse assustado com o meu aspecto de defunta. "Desculpe por ter demorado", declarou. Ele estava suspenso por um trenó e quanto mais eu olhava maior era a impressão de que aquela barba era grande demais para o seu rosto, e à menor distração, se enroscaria nas galhadas das oito ou nove renas voadoras que o sustentavam, e, para salvá-lo gastaria todo o seu exército de incontáveis duendes e elfos mágicos. Não contabilizei o par de óculos, infinitamente desproporcional. Pensei que eu tivesse finalmente ascendido ao plano espiritual, o que não era novidade alguma, já que era a quarta vez que eu havia morrido esse ano, e, a medida que ele se aproximava me perguntava se eu tinha alguma ideia de onde estava e o que estava fazendo. Comecei a suspeitar que a providência divina não decidiu me matar, ao contrário, queria que eu vegetasse pacientemente com aquele susto cardiovascular. Senti um calafrio e, temendo caminhar para o sétimo passo, retrocedi. A curiosidade levou a melhor e eu disse adeus ao ceticismo. Senti coragem para me levantar da cama e ao abrir as janelas, constatei que era de verdade aquela carruagem de formas impossíveis suspensa sobre o céu. Estendi a mão em sua direção e quando tentei tocá-lo, como num passe de mágica, ele desapareceu. Desci as escadas da casa e procurei pela árvore do desejo, e, como não havia nada embaixo pensei - ele foi embora com as sombras, do mesmo jeito que veio. Compreendi então que até o último momento eu tinha lutado para me proteger de todas aquelas histórias de bombas e tiroteios que me assaltavam a paz e por vezes a fé no que viria, mas lutei, sobretudo, para não perder a magia. Parei de criar embaraços à minha própria vida, porque não há dor que diminua o valor de uma consciência evoluída. Entendi que a paz pode ser concluída com um suco, um café ou um chá, valores que todos nós temos no caixa e isso até um andarilho pode pagar. Sou das que choram no banheiro, mesmo a casa estando vazia. Não esperei o convite do sono, pois sabia que aquela noite nem ele me visitaria. Estava começando a reler Alice pela décima vez quando alguém bateu na porta com nós nos dedos de tanta aflição perguntando se podia se entrar. "Pipa me desculpe", falou a voz num tom vagamente familiar. "Não sei se foi por ter passado muito tempo no mar juntado aquelas garrafas para entregar ao menino que desapareceu, mas de repente me deu uma vontade imensa de..."Papai Noel, não precisa completar, falei cedendo-lhe a vez - o banheiro é todo seu!


(Pipa)

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